Me deu vontade falar do meu pai. Mas acho melhor escrever porque sempre acabo chorando quando falo dele. Não é aniversário dele nem nada. Só deu vontade mesmo.
Eu me chamo Osvaldo (Neto), meu pai se chamava Osvaldo (Júnior). E meu avô, adivinhem?, chamava Osvaldo. Só Osvaldo mesmo.
Pra escrever sobre meu pai eu acho pertinente falar do pai dele. Meu avô me adorava. Eu era “O” neto que carregava o nome dele na dinastia da família e isso era muito importante pra ele. Quando eu era criança e não entendia muito as coisas da vida eu gostava dele também.
Mas a gente cresce e as pessoas que conheciam ele nos contam como ele era. E ele era horrível. Uma pessoa monstruosa. Com tudo e com todos. Meu avô apoiava os militares durante a ditadura e provavelmente não comandou sessões de tortura porque não devem ter dado essa oportunidade para ele. Porque sei que ele espancava os filhos ao ponto de pararem no hospital. Meu pai foi a maior vítima do meu avô. Todos os meus tios contam. E acho até que foi uma das razões para que os irmãos cuidassem do meu pai até mesmo quando ele não merecia.
Quando minha mãe ficou grávida (de mim) meu avô ofereceu ao meu pai a opção de pagar pelo aborto. Meu pai recusou e, por conta disso, teve que sair de casa. Minha mãe me conta que esse começo foi bem difícil mas eles tiveram muito suporte das minhas avós e de alguns tios (sempre que falo tios aqui são os irmãos do meu pai porque minha mãe é filha única).
A relação do meu pai com o meu avô sempre foi simbiótica. Eles se amavam e se odiavam. Eles queriam se afastar mas não conseguiam viver afastados. Meu pai acompanhou a vida do meu avô até a morte dele.
Lembro que no velório do meu avô os irmãos e filhos (meus primos) se encontraram e, logo depois, no mesmo dia, estavam todos bebendo, contando piadas e rindo. Eu não entendia porque estavam felizes naquele dia. Mas hoje eu entendo.
Meu pai é um homem do tempo dele. Criado com esse tipo de valores. Ele certamente teria se tornado um monstro pior do que o meu avô se a minha avó não fosse o ser humano mais iluminado que já habitou esse planetinha aqui. Minha avó já tinha falecido anos antes.
Meu avô era um monstro. Mas por causa da minha avó o meu pai se tornou humano. Mas não aquele humano que carrega só virtudes. Ele era humano, humano mesmo. Complexo. Caótico.
Ele era uma figura magnética. Ele era atraente e sedutor. As pessoas queriam estar com ele. Ele era inteligente e apaixonante. Até as pessoas que ele maltratava precisavam estar com ele. Ele conversava sobre qualquer coisa (porque lia muito) e sempre virava o centro das atenções.
Mas ele ainda tinha aquela parte “monstro”. Ele era infiel à minha mãe (no que os tios passavam pano ao culpar minha mãe por não ser uma boa esposa carinhosa). Minha mãe, admito, não é fácil. Mas ela nunca foi desleal ou infiel à ele.
Ele era violento. Lembro de uma cena quando tinha uns 8 ou 9 anos em que ele brigou com a minha mãe e num ato de violência suspendeu ela pelo pescoço com um cabo de vassoura contra a parede. Eu lembro de pular em cima dele pra afastar dela. E depois eu não lembro mais nada.
Mas ele era o cara forte. Ele era minha figura paterna. O cara que sabia desmontar e montar qualquer coisa. Sabia usar as ferramentas todas.
Aprendi a usar ferramentas com ele. Não foram aulas tipo: “olha, filho, essa daqui é uma chave de fenda”. Tava mais para “me dá a chave de fenda… Essa não idiota, você é burro? Já te disse que essa é a Philips”. Mas ele ainda era meu pai. O superherói, saca? Ele estava certo. Eu devia ser burro mesmo.
Mas esse cara aí, em toda a sua complexidade, também patrocinou várias empreitadas minhas. Ele comprou e montou todo meu laboratório de eletrônica quando disse que gostava daquilo. Assinou revista de eletrônica e tudo.
Também vendeu um dos nossos carros e fez vaquinha na família pra comprar meu primeiro computador. E me defendeu quando minha mãe ficou full-pistola comigo porque gastei meu primeiro salário em livros de computação.
Lembro de um dia que estava lendo uma revista de eletrônica para entender como um transistor funcionava. Eu já devia ter 9 anos (em alguns meses eu veria um computador pela primeira vez). Ele passou pela sala várias vezes e eu estava lá compenetrado na leitura da revista.
Ele ficou encafifado com a cena e perguntou: “— Filho, você tá gostando mesmo desse negócio de eletrônica, né?”. E eu respondi: “— Tô sim pai, mas é muito difícil… o meu colega lá aprende isso tudo rapidinho e eu to sofrendo pra entender.” e ele então responde, despretensiosamente, algo que carrego no coração: “— Olha filho, ele pode ser muito inteligente e aprender rápido, mas eu vejo que você é muito esforçado e isso é muito melhor”.
Eu adorava ficar com ele. Tinha noites que ele ia pro quartinho da casa, pegava o revolver Taurus .38 que ele tinha, colocava na mesa, e começava a desmontar tudo. Limpava e lubrificava. E depois montava novamente. No dia seguinte a gente ia para a fazenda do meu tio para dar tiros em latinhas. Minha mãe detestava isso. Mulheres são sempre mais sensatas.
Eu olhava para o meu pai e pensava: “cara, quando crescer eu quero ser assim!”. Tudo o que eu fazia na vida era com o objetivo de impressionar ele. Deixar ele orgulhoso de mim. Mostrar pra ele que eu não era burro nem idiota. Mas eu ainda falhava. Sempre falhava.
Mas meu pai também abandonou a gente. Lembro de quando ele simplesmente foi embora e não voltou. Eu, minha mãe, e minha irmã de 2 anos saímos do MS rumo ao interior de SP com um empréstimo da minha avó materna que pagava só a mudança mas não as passagens. Então viajamos na boléia do caminhão de mudanças.
E aí a minha mãe que não trabalhava se associou com minha avó e uma tia-avó e montaram um negócio de bijuterias que funcionou muito bem. Bem o suficiente para que meu pai ficasse com vontade de voltar. E ele voltou. E minha mãe aceitou ele de volta todo arrependido.
Eu já estava maiorzinho e até começaria a trabalhar com computação algum tempo depois que ele voltou. Mas eu ainda era tímido, introvertido, e bastante inseguro. Lembram? Eu era o menino burro.
Nessa época minha avó, mãe do meu pai, a pessoa mais maravilhosa que já conheci, faleceu. O cigarro levou ela da gente. E junto com ela levou a alma do meu pai. Daquele dia em diante meu pai oscilou, e oscilou, e se afundou, e se reergueu, e afundou de novo, e sumiu, e apareceu, e se separou da minha mãe, e voltou pra ela.
Lembro de ouvir ele discutindo com minha mãe no quarto. Eles falavam tão alto que eu conseguia ouvir do lado de fora. Lembro dele falar: “Esse menino é um mole. Ele é lerdo… parece desconectado do mundo. Não aprende as coisas”.
E eu fui crescendo. E agora eu ainda queria mostrar pra ele que eu não era burro. Mas agora era com ódio. Era “vou mostrar pra esse filha da puta quem é o burro”.
E a vida foi passando… e passando… e passando… eu aqui e ele lá.
Encontrei uma companheira para compartilhar minha vida e decidimos nos casar. Mas não sem fazer uma festa de noivado para as nossas famílias. E assim fizemos.
A festa foi muito bacana com direito à minha mãe ficar triste porque o filho dela iria se casar. Mas a conversa que eu ouvi do meu pai com outra pessoa foi: “— Netinho? (me chamam assim) Casamento? Isso aí é fogo de palha. Não dura um ano.” Estou junto com a Elaine desde então e já são quase 20 anos assim. Temos 2 filhos: Matheus e Mariana. Um menino e uma menina. Tal como eu e minha irmã mais nova.
Mas a vontade de mostrar pra ele que eu não era burro, lento e idiota estava lá. E agora eu acrescentei toda a família. Todos os tios precisavam entender que eu não era o filho burro de pais desajustados, que não tinha nenhum futuro.
E essa foi a bosta da minha vida. Levei minha vida inteira tentando provar algo para as outras pessoas e acabei esquecendo de mim mesmo. Isso derreteu minha alma.
E pra piorar, na ausência de uma figura paterna, eu projetei tudo o que eu queria ser em um dos meus tios. E ele se mostrou igual ao meu pai. Mas uma versão com muito mais desbotada e com muito menos charme.
Aos pouco e com muita terapia fui conseguindo acomodar esses sentimentos e me aproximando do meu pai. Dava pra conversar várias coisas exceto alguns tópicos mais políticos, afinal, eu era o petistinha da família.
Fui visitar ele algumas vezes onde ele morava. Conversávamos o dia todo. A saúde dele já não estava boa. Pressão alta, cigarro, bebida, sedentarismo e obesidade faziam parte do cardápio. A fórmula perfeita para um desastre.
Ele morreu enquanto dormia em casa na véspera do feriado do Natal de 2018. Encontraram o corpo dele alguns dias depois. Aparentemente ele teve um AVC enquanto dormia e não resistiu. A gente demorou pra saber que ele havia morrido porque ele tinha dito que estaria pescando no rio durante o feriado. E celular não pega lá onde ele estaria. No celular dele estavam todas as minhas mensagens desejando um Feliz Natal. Infelizmente ele não leu.
Quando fui buscar as coisas que ele tinha deixado minha tia me disse: “— A maior decepção da vida do seu pai foi você ter se tornado petista.” Ou seja, aparentemente eu falhei em deixar ele orgulhoso até a morte dele.
Pais e Filhos
Você culpa seus pais por tudo, isso é absurdo
– Legião Urbana
São crianças como você
O que você vai ser
Quando você crescer?
Quando eu estava pra me tornar pai eu pensei: “— Vou ser muito melhor do que meu pai foi pra mim.”
Hoje eu entendo como é complicado. Meu avô destruiu com a cabeça do meu pai. Ele, por sua vez, não fez tão bem assim pra minha cabeça também. Eu tenho total clareza que não passei nem perto de superar esses problemas. No máximo cheguei ao ponto de saber que eles existem.
O jeito mais fácil de me fazer chorar é falar sobre relacionamento pai e filho.
Eu olho pro meu filho e sinto um medo de gelar os ossos de decepcionar ele. Ao mesmo tempo não queria que ele olhasse pra mim com o mesmo tipo de idolatria que eu sentia pelo meu pai. Não quero esse sentimento dele porque tenho certeza que vou decepcioná-lo.
Queria dizer pra ele que eu acho ele fodapracaralho. Queria dizer pra ele que vai ser bem difícil me decepcionar. Que eu sinto orgulho dele até quando ele falha tentando. Ou melhor, eu já sinto orgulho dele quando eu vejo ele tentando. Não importa o resultado.
Queria que ele não depositasse admiração em mim. Não guiasse a vida dele com esse tipo de admiração. Quero que ele entenda rapidamente que ele tem um pai humano. Humano como todo pai.