Gostinho de infância

Comecei a mexer com computador quando era criança. Antes disso a brincadeira era com eletrônica.

Quando falo essas coisas nos dias de hoje as pessoas ficam pensando: “credo! que nerdão”, ou ainda “coitado, ao invés de estar brincando…”, ou “tadinho! que infância mais triste”.

Mas o que as pessoas não sabem é que na década de 80, quando eu era criança, computadores pessoais eram vendidos para o público infantil. Era assim porque não dava pra fazer muita “coisa de adulto” com máquinas de 8 bits, poucos kilobytes de memória e processadores limitados.

As fabricantes anunciavam os computadores como “brinquedos que deixariam seus filhos mais inteligentes”. As crianças queriam computadores porque eles tinham jogos muito legais mas usavam o argumento da inteligência para convencer o pai e o Papai Noel da necessidade dessa máquina de criar gênios.

Mas os computadores não foram os primeiros brinquedos que foram vendidos ou comprados com esse argumento. Naquele tempo a gente tinha uma infinidade de kits de química, kits de eletrônica, ferramentas de brinquedo, revistas, livros e enciclopédias para os pais poderem gastar seu dinheiro e deixar seus filhos mais espertos.

No mercado editorial existiam revistas específicas para crianças e jovens aprenderem eletrônica. Li muito a coleção da Divirta-se com Eletrônica, Be-a-Bá da Eletrônica e cheguei a ganhar uma assinatura da Experiências e Brincadeiras com Eletrônica Júnior do meu pai. A primeira vez que vi um computador e entendi mais ou menos para quê eles serviam foi na revista Informática Eletrônica Digital.

Eu não tenho dados para darem suporte à minha suposição mas eu imagino que uma geração inteira de engenheiros, cientistas, professores, pesquisadores, etc “escolheram suas profissões” brincando com essas coisas.

Sei que escolher uma profissão tão novo não é algo muito legal, mas acreditem, até essa “escolha da profissão” era uma brincadeira em si. Eu já fui empresário do ramo de elevadores à dono de emissora de rádio passando pelo tão sonhado (até hoje) cargo de desenvolvedor de jogos de Atari. Não fui nada disso mas hoje estou aqui: programador.

Computadores dos anos 80

Como disse os computadores dos anos 80 não eram providos de muito poder computacional. Eles tinham formatos que variavam entre um case com um teclado e todo o circuito eletrônico do computador era montado dentro desse mesmo case. Alguns modelos (como o meu MSX Expert) tinha um teclado destacado da “CPU” em si mas no geral ficava tudo em um único lugar.

Foto de um computador TK85 Preto da Microdigital. O computador era montado em um case junto com o teclado com teclas pequenas de borracha.

Monitores eram caros na época mas todo mundo já tinha um televisor em casa. Então essas máquinas frequentemente eram ligadas nas TVs da sala. Isso tornava a gente bem produtivo porque precisava terminar tudo o que queria antes da novela da mãe (e do pai). Minha ascensão social começou quando meu pai me deu uma TV PB exclusiva pra usar com meu computador.

Nas minhas primeira interações com um computador a gente copiava os programas dos manuais, executava, corrigia os erros de digitação (prova de que aprendemos primeiro a depurar e só depois aprendemos a programar), executava com sucesso, brincava com o programa e perdia tudo desligando a máquina. Não tinha onde gravar o programa.

Mais adiante tive acesso à um computador com gravador cassete que deixava a gente gravar os programas em fita. O barulhinho gravado na fita é muito parecido com o barulho dos Modems da época da Internet discada. O princípio por trás dos dois sistemas é o mesmo.

Nessa época algumas pessoas mais abastadas já tinham drives de disquete (5 1/4″) mas eu fiquei na fita cassete até minha ida para o mundo dos PCs IBM/Intel. Quando a computação deixou de ser brinquedo. Deixou de ser brincadeira.

Computação e Programação

Naqueles tempos a gente não tinha acesso à Internet. Pra falar a verdade a Internet era acessível, talvez, apenas para militares e algumas universidades.

Os “civis” do lado de fora do muro da Reserva de Mercado até já tinham acesso à BBSs ou Videotexto (esse até apareceu no Brasil pela Telesp e Telemig mas eram caros e praticamente desconhecidos).

Por conta disso, se você quisesse estudar e aprender a usar os computadores você tinha um número limitado de opções: revistas, livros, poucos cursos, prática.

Os pais daquela época gastavam um dinheirão em um brinquedo (computador) para os filhos. As crianças ligavam essas máquinas e… uma tela preta com um cursos esperando comandos aparecia. E é isso.

Alguns modelos adicionavam um ou outro cartucho com jogo ou demo no pacote para distrair a criança (e os pais). Mas ainda assim não justificava o investimento no aparelho. Um videogame custaria bem menos.

Prevendo isso as fabricantes mais ricas investiam pesado no mercado editorial e lançavam seus produtos com belos manuais e livros que ensinavam programação. Alguns fabricantes fundaram editoras só pra publicar revistas no mercado.

Os manuais do meu Expert eram editados pela Editora Aleph. A maior editora de ficção científica nacional.

Foto com dois manuais do MSX Expert com encadernação espiral. O livro da esquerda se chama Dominando o Expert e o da direita se chama Linguagem BASIC MSX

Quando o nossos pais compravam um computador eles realmente recebiam um pacote de coisas que permitiam o uso daquele computador por uma criança e tudo o que estava ali tinha o objetivo de fazer você aprender a usar um computador do jeito mais pleno: programando.

Eu queria fazer jogos. E fiz alguns. Era uma delícia trazer os amigos do bairro pra jogarem os jogos que eu havia criado. Meus jogos, para os padrões gerais da época, eram razoavelmente divertidos.

Era possível usar aquela máquina para criar coisas que quase se igualavam àquelas coisas que você tanto curtia.

Hoje

Hoje eu sou pai. E vejo meus filhos na Internet. Ou jogando. Ou jogando na Internet. E só. Sempre com um computador. Seja ele no formato de um computador, tablet ou smartphone.

Meu filhos gostam de jogar e, certo dia, resolvi sentar com eles pra fazer um joguinho. Um jogo simples, claro. Um tubarão controlado pelo mouse que tinha que comer peixinhos no mar e desviar dos inimigos. Usamos o Scratch na brincadeira.

Legal! Jogaram um pouco e… valeu pai!… Nunca mais tentaram outra vez. Foram jogar os joguinhos que eles gostam… todos em 3D, com gráficos realistas e ação ininterrupta.

Não dá pra competir. Como falar pra uma criança que ficou 2~3hs trabalhando no “jogo do tubarãozinho” que ela consegue criar seus próprios jogos de verdade? Os jogos que eles jogam são quase inalcançáveis para uma criança.

Hoje eu sei que os jogos da Konami que eu jogava na década de 80 também eram ‘inalcançáveis’ pra mim. Mas na época não pareciam. E não sabendo que era impossível, fui lá, e tentei… sem sucesso. Mas tentei. ?

Algumas vezes me pego pensando se seria possível recriar a experiência que uma criança da década de 80 teve com computadores em uma criança dos dias de hoje.

Não tenho resposta pra essa pergunta e nem sei se vale a pena tentar. Talvez seja só uma porção grande de saudosismo da minha infância. Foi tão gostoso que gostaria que meus filhos sentissem o mesmo.

Não sei se vou conseguir mas vou seguir tentando. E nessa tentativa vi o lançamento do RaspberryPi 400. Parece que os ingleses que trabalham nesse projeto compartilham alguns sentimentos que descrevi aqui.

Os ingleses investiram pesado nessa brincadeira de computador pra crianças lá nos anos 80. E o projeto dos Raspberry e Microbit parecem estar tentando criar uma releitura modernizada dessa experiência. Torço muito por eles. E já comprei o meu porque bateu uma baita saudade e ninguém é de ferro.

Foto com um computador RaspberryPi 400 na mesa. O computador vem montado em um case com o teclado. O teclado é branco com detalhes em preto e rosa. Do lado do computador tem um mouse branco e rosa e um monte de cabos que acompanham o kit.
RaspberryPi 400 Desktop

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